A medicina que rege a Casa Branca
Apesar da fama de glamour e destaque mundial, a posição de médico da Casa Branca, nos Estados Unidos, não é necessariamente requintada no dia a dia. Daniel Ruge, primeiro médico do ex-presidente Ronald Reagan, renunciou após o primeiro mandato do chefe de estado e, na saída, definiu seu trabalho como “pesado, chato e não clinicamente desafiador”.
A verdade é que a função de médico-chefe da Casa Branca, sede do governo dos Estados Unidos, é um cargo tão peculiar quanto “puxado”.
Mas uma médica, em especial, reuniu boas histórias e lembranças e, diferente de Daniel Ruge, não avaliou seu cargo de “médica presidencial” como um trabalho penoso. Muito pelo contrário.
A doutora Eleanor Concepcion “Connie” Mariano (“internal medicine”, especializada em medicina diagnóstica, preventiva e de tratamento para adultos), hoje com 60 anos, foi a primeira mulher a ocupar a função, entre os anos de 1993 e 2001 (atendendo o final do governo George Bush “pai” e toda a gestão de Bill Clinton).
De suas memórias nasceu o livro “The White House Doctor”, lançado em 2011 pela editora St. Griffin de Martin. É nele que ela conta um dos momentos mais difíceis do período, como define: o caso Monica Lewinsky.
E também o mais gratificante, na sua opinião, como católica: “Eu tive a honra e o privilégio de conhecer o Papa João Paulo 2º. Ele tinha uma ‘aura’ de bondade e paz que eu nunca vou esquecer”.
O cargo que ela desempenhou é o título formal e oficial do médico diretor da Unidade Médica da Casa Branca, uma unidade considerada militar dos Estados Unidos e responsável não apenas por eventuais problemas médicos do presidente, mas também pela saúde preventiva dos chefes de estado (o médico de Barack Obama é, desde 2013, o doutor e capitão Ronny Jackson).
O médico nessa função também supervisiona uma equipe que normalmente é composta por cinco médicos militares, cinco enfermeiros, cinco médicos assistentes, três médicos civis, três administradores e um gerente de TI.
O médico da Casa Branca é, metaforicamente, a “sombra do presidente” – já que ele ou ela podem ser requisitados para estar sempre próximos se o presidente estiver na Casa Branca, no exterior, em campanha eleitoral ou a bordo do avião presidencial Air Force One.
O profissional é ainda responsável pela prestação de cuidados médicos aos membros da família imediata do presidente, o vice-presidente e a família dele. Ele ou ela podem também fornecer assistência médica e atenção aos mais de 1,5 milhão de visitantes que passam pela Casa Branca a cada ano, assim como enviados internacionais e outros convidados do governo.
A doutora Connie (como ela mesma prefere ser chamada) é uma figura afável e, provavelmente, por já não precisar guardar a distância típica dos funcionários atuais do governo norte-americano, muito verdadeira em suas colocações e opiniões.
Ela concedeu uma entrevista ao site Coração & Vida, falando sobre sua antiga rotina e suas posições durante e após ter servido à medicina em um dos locais mais importantes e decisivos da política mundial.
Coração & Vida: Em primeiro lugar, gostaríamos de saber como é sua vida profissional hoje em dia. Depois de servir como médica da Casa Branca, como a senhora seguiu praticando a medicina?
Depois que saí da Casa Branca, em 2001, juntei-me a Mayo Clinic, em Scottsdale, no Arizona. Em 2005, deixei a Mayo e formei minha própria clínica privada em Scottsdale, onde cuido de pacientes VIP e estou de plantão todos os dias – uma prática de “clínica particular” e a qualquer momento que for necessária.
C&V: Como se sentiu quando decidiu partilhar as suas experiências no livro “A Médica da Casa Branca”? Como surgiu a ideia?
Muitas pessoas me perguntavam como tinha sido e diziam para escrever e compartilhar minha história. E, de fato, eu tinha muitas lembranças maravilhosas e fotografias que eu queria partilhar.
C&V: A senhora serviu por nove anos a Casa Branca. Como tinha sido sua carreira até ali e como a senhora chegou a essa posição fascinante?
Eu tinha uma bela carreira na Marinha. Tinha servido por dois anos a bordo de um navio da Marinha e, em seguida, passei um tempo operando uma clínica na Califórnia e também como professora em um hospital de ensino para a Marinha. Então, eu fui indicada pelas Forças Armadas para o cargo e fui escolhida entre cinco outros candidatos. Foi muito competitivo e muito difícil ser escolhida.
C&V: Os primeiros dias no cargo foram muito duros, assustadores?
Sim, foi complicado. Foi muito difícil aprender como as coisas eram feitas na Casa Branca e também me cuidar para não ser intimidada ou ficar com temor dos pacientes que estava tratando.
C&V: Seu livro é, por vezes, um livro de memórias muito irreverente e mesmo doce. O cotidiano tinha essa mesma “vibração”? A senhora sente falta daqueles dias?
Eu gosto de usar humor e ver o lado bom das coisas sempre. Sinto falta daqueles dias de trabalho com uma grande equipe de médicos e enfermeiros para cuidar do presidente e da primeira família. Sinto falta das viagens ao redor do mundo e também de voar no Air Force One.
C&V: Qual foi o momento mais difícil ou de pressão que a senhora enfrentou como médica da Casa Branca?
Quando Monica Lewinsky acusou o Presidente Clinton de ter tido um caso com ela. Foi um momento muito estressante porque sentimos que o presidente estava sendo acusado falsamente e, mais tarde, descobriu-se que era verdade. Foi um período muito decepcionante.
C&V: A senhora teve de viajar com os presidentes e a equipe deles (quer dizer, em cada viagem dentro dos EUA e no exterior) o tempo todo?
Estive em cerca de 75% das viagens do Presidente Clinton – e em todas as viagens que ele fez ao exterior.
C&V: E sua vida pessoal sofreu com esta rotina?
Sim, perdi o crescimento dos meus filhos, que eram muito jovens, e então meu marido ficou em casa e cuidou deles. Causou muitos problemas no meu casamento, e isso nos levou ao divórcio alguns anos após eu deixar a Casa Branca.
C&V: Como era ser uma mulher responsável pela saúde dos presidentes e suas famílias? Foi um desafio, a senhora sofreu algum tipo de preconceito?
Sim, várias vezes. Sempre era subestimada porque eu era uma mulher e também pela minha ascendência filipina (meus pais nasceram nas Filipinas). Eu não me encaixava no estereótipo do médico tradicional da Casa Branca, com toda certeza.
C&V: O que a senhora acha sobre as reformas no sistema de saúde dos EUA (o chamado “Obamacare”, Lei de Atendimento de Saúde a Preço Acessível)? Qual a sua opinião sobre o tema?
Eu não acho que são boas as reformas no geral. Acho que esse foi um ato político e não considerou o que os pacientes realmente querem e precisam. Não considerou também a falta de médicos na América. Eu acredito no livre mercado e na livre iniciativa na saúde.
C&V: Essa é uma “nova fase” para as pessoas nos Estados Unidos, há coisas para mudar?
Ainda estamos nos adaptando ao Obamacare. Mas acho que, até o momento, o programa mais criou dúvidas e preocupação nas pessoas do que os tranquilizou.
C&V: Gostaríamos de saber qual é a memória mais inesquecível como médica da Casa Branca.
As reuniões com o Papa João Paulo II – por quatro vezes! Era um homem erguido na fé e foi incrível conhecer um Papa que, eventualmente, veio a se tornar um santo pela Igreja Católica. Ele tinha uma aura de gentileza e bondade e as mãos muito suaves. Eu pensei: “Obviamente, este homem não lava louças ou trabalha no jardim, onde as mãos iriam ficar sujas ou maltratadas”.
C&V: A senhora é católica?
Sim, eu sou uma pessoa religiosa. Fui criada como católica, como muitos filipinos. Em termos de fé e medicina, eu sinto que o meu trabalho é fazer a vontade de Deus e aliviar o sofrimento, ajudando a diagnosticar pacientes e prevenir doenças.
C&V: O presidente era disciplinado com a saúde?
Ele era um bom paciente, mas a parte mais difícil era descansar sua voz. Ele gostava de falar. Normalmente, durante o inverno, sua alergia ficava pior e dava rouquidão. Eu dizia: “Descanse sua voz”. E ele: “OK”. Virava as costas e continuava a falar.
C&V: Doutora, uma última pergunta: se lhe pedissem para retornar a essa posição, a senhora concordaria?
Talvez sim. E também porque, quando um presidente chama, um bom médico precisa atender às necessidades dele.