Brasil tem epidemia localizada de AIDS, diz secretário de Saúde
Thassio Borges
A Unaids (Programa das Nações Unidas para HIV e AIDS) chamou a atenção dos brasileiros ao divulgar recentemente os números referentes à evolução do vírus no país e no mundo. De acordo com relatório da organização, o número de infecções com HIV no Brasil aumentou 11% entre 2005 e 2013, enquanto a média global apresentou queda de 13% no período.
Confira mais uma matéria com entrevista de David Uip:
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A quantidade de mortes relacionada à doença também difere no Brasil em relação à média mundial: alta de 7% aqui, contra retração global de 35%. Para David Uip, secretário de Saúde do Estado de São Paulo, o país enfrenta atualmente uma epidemia bem localizada de AIDS e precisa pensar em políticas públicas claras e dirigidas para enfrentar o problema.
“Temos uma epidemia dentro da epidemia, muito, muito séria. É pouco provável que as pessoas não estejam informadas, mas [de qualquer forma] é algo muito preocupante. São necessárias políticas públicas muito claras, dirigidas, pra mostrar que essa história não acabou.
Conversando com pacientes com AIDS vejo que eles banalizam um pouco o assunto. Acham que é uma doença que já acabou, que já tem cura, o que não é verdade”, afirma o infectologista, que identifica também um dos primeiros desafios que devem ser enfrentados neste cenário.
“Tem de haver uma obsessão em acabar, zerar a transmissão de mãe pra filho. Isso é possível. Com um bom pré-natal, diagnóstico precoce na mãe, medicamentos e proteção periparto, você acaba com a transmissão da mãe para a criança”, completa.
Uip recebeu Coração & Vida na Secretaria e falou sobre o que está sendo feito para minar o crescimento dessa epidemia. O infectologista também abordou os desafios e perspectivas específicas de sua área em entrevista que você confere a seguir.
Coração & Vida – Quais têm sido as políticas do Estado para o combate e prevenção da AIDS?
David Uip – O número de casos de AIDS voltou a aumentar em algumas situações, sendo a principal entre homens que fazem sexo com homens, na faixa etária que vai de 18 a 30 anos. Temos uma epidemia dentro da epidemia, muito, muito séria. Em qualquer nível social. É pouco provável que as pessoas não estejam informadas, mas é algo muito preocupante. Trata-se de uma epidemia bem localizada, mundial, não somente do Brasil. São necessárias políticas públicas muito claras, dirigidas, pra mostrar que essa história não acabou. Conversando com pacientes com AIDS, percebo que eles banalizam um pouco, acham que a doença já acabou, que tem cura, o que não é verdade.
Creio que tem de haver uma obsessão em acabar com a transmissão de mãe pra filho. Isso é possível. Com um bom pré-natal, diagnóstico precoce na mãe, medicamentos e proteção periparto você acaba com a transmissão da mãe para a criança. O Estado de São Paulo lançou agora a Rede Estadual DST/HIV/AIDS, que vai desde o entendimento do que deve ser feito numa atenção primária aos ambulatórios especializados e até como distribuir os pacientes que devam ser internados. Nós entendemos que esses pacientes, tanto com hepatite, DST, HIV ou AIDS, ficam na rede para prevenção e para tratar essas doenças, mas há a partir de determinado momento é necessário trata-los em ambulatórios especializados. São Paulo tem 200 unidades deste tipo e estamos com uma política agressiva de melhorar, qualificar e ampliar esse número. O investimento no ano que vem será superior a R$ 30 milhões, entendendo que essas doenças são muito complexas […] e precisam de especialistas com experiência tanto no manuseio dos equipamentos, quanto para tratar de enfermidades associadas e efeitos adversos. Do ponto de vista de ambulatório, pra nós está clara essa questão.
Do ponto de vista da internação, estamos criando uma rede. Classificamos os hospitais em estratégicos, estruturantes e de apoio. Qual é o estruturante? É aquele que tem competência para atender a alta complexidade, pacientes com AIDS que precisam trocar articulações, fazer transplante, entre outros. O estratégico é o hospital que terá competência para atender o dia a dia do paciente com AIDS, que interna com infecção oportunista, que abre um quadro com tumor. E o de apoio é o que dará a retaguarda aos dois primeiros. Muitas vezes esses pacientes são internados, precisam tomar medicamentos por muito tempo, mas não há para onde encaminhá-los. É o apoio que fará a contra referência para os estruturantes e estratégicos. Começa a tratar em um e termina em outro.
C&V – Como consequência de seu trabalho, o senhor atendeu pacientes considerados famosos ao final da década de 1990. Certa vez, vi uma entrevista em que o senhor afirmava que os famosos se recusavam a assumir doenças em público. Nos últimos anos, acompanhamos o tratamento de pessoas como Hebe Camargo, Ana Maria Braga e Reynaldo Gianecchini, que falaram abertamente sobre suas doenças e tratamentos. O senhor considera que essa mudança na postura colabora também para que o cidadão comum sinta-se encorajado a buscar tratamento e assumir suas enfermidades?
DU – Vejo como quebra de paradigma o caso de Mário Covas. A história mudou a partir daí. Quando fizemos o diagnóstico do câncer do Covas, perguntamos se ele queria que nos manifestássemos. “Fui eleito pelo povo, o povo tem que saber de tudo. Não escondam informações”, ele disse. Havia uma equipe que cuidava do Covas, mas caminhou para que eu me tornasse médico dele. Sou médico da família até hoje, representei as instituições, no caso o InCor e o governo do Estado, e fui seu porta-voz como doente.
Vi naquele momento uma quebra de paradigma total. O momento sensacional dessa história foi quando ele internou pela primeira vez e quis dar uma entrevista. Quando ele piorou, sugeri que falasse porque estavam achando que ele havia morrido. Uma hora depois ele me chamou e disse que queria dar uma entrevista, mas que seria coletiva. Foi uma das coisas mais emocionantes que já vi. Não havia uma pessoa naquela coletiva que não se emocionou. Ele usou uma fábula para explicar a situação dele e a repercussão foi mundial.
C&V – Um tema muito polêmico no meio médico diz respeito à força do otimismo para a recuperação de pessoas doentes. O senhor acredita nisso?
DU – Com certeza, não tenho a menor dúvida. Eu tinha um grande amigo, que um dia internou no InCor, e disse que estava sentindo um cheiro muito ruim. Fez uma tomografia e descobriu um grande tumor de cérebro. Sua expectativa era de seis meses de vida, mas ele me disse que enquanto suas filhas, que são atletas, não fossem ao Pan-americano e às Olimpíadas, não morreria. Elas foram para o Pan-americano, e no dia em que embarcaram para as Olimpíadas, ele morreu.
Há outro caso muito parecido. Um paciente foi diagnosticado com tumor de cérebro, submeteu-se à cirurgia e lhe deram um prognóstico de seis meses. Na véspera da operação, seu sócio e grande amigo veio falar comigo. Disse-me que ele não poderia morrer, que era um amigo, um irmão, etc. Para surpresa de todos, o paciente saiu-se muito bem e rápido da cirurgia. Seu sócio me informou que iria para o Rio de Janeiro e pediu que eu entrasse em contato por qualquer notícia. Dez horas depois, me informam que ele morreu no hotel, no Rio de Janeiro, vítima de infarto. O paciente, operado do tumor, está vivo até hoje, oito anos depois.
São fatos e não tenho nenhuma dúvida de que a disposição de enfrentamento de cada um auxilia, claro que respeitando os limites da ciência. Isso não é conversa, é uma ciência atual, que junta a neuropsiquiatria, a endocrinologia e o sistema imunoinflamatório infeccioso. Outro caso fantástico é o de José Alencar, um exemplo de enfrentamento, de garra, que poucas vezes eu vi. Creio que esses dois são os grandes exemplos.
C&V – O senhor é um conceituado médico na área da Infectologia. Em sua opinião, qual é hoje o principal desafio desta área médica no Brasil? Há alguma enfermidade que gera maiores preocupações?
DU – Creio que é uma área muito ampla, mas temos caminhado para grandes mudanças. Primeiro, o entendimento de que muitas coisas têm a ver com infecção. Por exemplo, tumores: câncer de fígado, câncer de estômago, leucemias e linfomas, câncer de cérebro e de colo de útero da mulher, câncer de pênis. Há uma enorme relação [com vírus].
A outra é um encaminhamento para a terapêutica gênica, genética, que deve avançar muito. Então, será necessário um investimento em tecnologia e inovação, e acho que a coisa vai bem para essa história. Como há uma mudança epidemiológica no Brasil, com a população envelhecendo, temos que nos preparar para o que está acontecendo. Vamos ter pessoas com muito mais idade e sem doenças. Será preciso trabalhar com prevenção, que inclui vacinas, por exemplo.