Por uma maternidade mais livre
Ser pai e mãe não é fácil, nunca foi. Mas talvez a sociedade tenha complicado demais esse papel nas últimas décadas, com regras, digamos, absurdas. Essa é a opinião do pediatra espanhol Carlos González.
Especial do mês – Artigo: Quando suspeitar que seu filho está com algum problema no coração?
Você sabia… Que a alimentação saudável deixa as crianças mais inteligentes?
Defensor do afeto sem limites, do aleitamento materno sob livre demanda, da cama compartilhada, da inutilidade do castigo e do respeito às crianças, o especialista, que é pai de três filhos, tem uma percepção diferente sobre o tema e ideias que vão contra a rigidez de muitos profissionais e fontes tradicionais de informação, a começar pela alimentação.
“Todas as crianças, como os animais, sabem como comer. Ninguém tem que ensinar a um cervo que sua dieta deve ser de grama, ninguém tem que ensinar um leão que sua dieta deve ser de carne. Cada animal come instintivamente o melhor que puder”, explica González.
Para o especialista, a responsabilidade dos pais é ter comida saudável em casa. Entre a comida saudável que você oferece, a criança tem direito a escolher o que quer comer e a quantidade que deseja.
“Muitas vezes eliminamos, sistematicamente, qualquer possibilidade de a criança escolher o que comer. Nós a ensinamos a comer exatamente o que queremos, ela querendo ou não, com fome ou não”, destaca o especialista, descartando, com isso, a possibilidade de a criança se alimentar de acordo com a demanda de seu organismo.
Autor de mais de sete livros, entre eles “Manual Prático do Aleitamento Materno”, “Bésame Mucho – Como Criar Seus Filhos Com Amor” e “Meu Filho Não Come!”, Carlos González falou ao site Coração & Vida sobre a última obra, lançada recentemente em português. Confira abaixo a entrevista:
Coração & Vida – Hoje a alimentação é o tema central da discussão familiar, muitas vezes quando ela já é um problema. O que fazer para que isso não seja um problema?
Carlos González – Na verdade, é muito simples evitar problemas de alimentação, basta começar desde cedo. Como, por exemplo, permitir, a partir dos seis meses, que o próprio bebê pegue a comida e a leve até a boca. Não insistir, não forçar, não colocar comida em sua boca.
Além disso, fornecer, desde o início, alimentos saudáveis. O mesmo que comem seus pais, que também deve ter uma alimentação saudável, porque dar a um bebê uma refeição diferente de seus pais é inútil. Não faz sentido oferecer durante seis e doze meses legumes sem sal, frango grelhado e frutas, se depois de dois anos vão beber refrigerante e comer biscoitos, doces e salgadinhos.
C&V – Teremos desaprendido a comer? Como isso influencia nossa vida?
CG – Exatamente, desaprendemos a comer. Todas as crianças, como todos os animais, sabem como comer. Comem instintivamente o melhor que puderem, mas frequentemente refutamos sistematicamente qualquer possibilidade de elas escolherem o que comer. Aquela criança que não come há anos o que quer, mas sim o que lhe disse a sua mãe, talvez não seja capaz aos 15 anos de tomar suas próprias decisões. Vai sempre olhar para alguém para que lhe digam o que comer. Porém, não será para a sua mãe ou para o médico. Vai comer o que é anunciado na TV, vai seguir a dieta da moda: “como perder dez quilos em um fim de semana”, “operação biquíni”, “conheça os segredos das estrelas para perder peso”… Um desastre!
C&V – Qual o impacto da publicidade e até mesmo dos pediatras, com a prescrição de fórmulas e complementos, na alimentação infantil?
CG – O impacto é terrível. Escreva no papel todos os comerciais de alimentos que você vê na TV em um dia, e veja qual dieta que sairá. Um desastre! Além de ser um motivo para não assistir muita televisão e pedir uma legislação que impeça a publicidade na programação infantil.
Quase todos os alimentos anunciados na televisão são de má qualidade. Bebidas açucaradas, doces, biscoitos, salsichas, batatas fritas, alimentos processados e pré-cozidos – geralmente com muito mais sal, gordura e açúcar do que quando preparados em casa – precisam ser anunciados, porque se não o forem não serão vendidos. Em vez disso, são vendidos a cada ano milhares de toneladas de grãos, vegetais, frutas, peixes, sem qualquer anúncio.
C&V – Apesar da reclamação de muitos cuidadores de que as crianças não comem, a obesidade infantil já chega a 2 milhões de casos por ano no Brasil. Onde essa conta não fecha?
CG – Está muito claro. Muitos pais têm uma ideia exagerada sobre o que uma criança deve comer. Eles acreditam que a criança “não come nada”, quando a criança já está obesa. E devemos reconhecer que os médicos tiveram grande parte da culpa, recomendando por décadas quantidades muito maiores do que a comida necessária, insistindo que a criança “tem que comer”.
C&V – Há uma sobrevalorização da alimentação infantil, em que se espera que a criança coma muitas coisas saudáveis, mas que acaba não refletindo na sociedade onde essa criança viverá?
CG – Exatamente! Foi o que disse antes, de nada serve tentar dar a uma criança uma dieta saudável se dentro de um ano ela comerá a mesma comida que seus pais, e seus pais comem mal. O importante é mudar a alimentação de toda a família, de toda a sociedade. Acabar com bebidas açucaradas, parar de adicionar o açúcar em todos os lugares. Lembrando que muitos alimentos industrializados têm açúcar, como salsicha, leite, pão, alimentos pré-cozidos, refrigerantes e sucos. Mesmo uma família que acredita que não usa muito açúcar, provavelmente, já ultrapassa a dose aceitável de consumo. Não se trata de preparar uma comida especial para o bebê, sem sal ou com pouco açúcar, mas sim que toda a família tenha uma alimentação com pouco sal e açúcar, e, assim, o bebê possa comer desde o primeiro momento o mesmo que seus pais.
C&V – Como “resgatar” uma criança que já está seletiva e recusando alimentação?
CG – Rejeitar certos alimentos é normal em crianças. Normalmente, os bebês comem de tudo, incluindo papel de jornal e terra do chão. Mas, após um ano ou dois, estão se tornando cada vez mais seletivos, rejeitando os alimentos que uma vez gostavam, até que chegam a um “menu infantil” típico.
Isso é normal, o que se deve fazer é nunca os forçar a comer, não insista, não faça promessas, não ofereça prêmios. Isso não significa que devam comer macarrão todos os dias. Simplesmente no dia que há macarrão a criança diz “que bom” e come mais; enquanto no dia de lentilhas ou espinafres a criança dirá “Argh, lentilhas, sempre lentilhas!”, e coma menos. Se não quiser comer, que não coma, ou que coma outra comida que tenha na refeição, ou mesmo a sobremesa.
“Ah, mas não quero que ele coma tanto bolo”. Então não ofereça bolo, ofereça frutas, e a criança poderá comer quantas quiser, mesmo que não tenha comido o prato principal. No entanto, se os pais comprarem refrigerantes, bolos, salgadinhos e doces, os filhos comerão isso.
Revisão técnica
Prof. Dr. Max Grinberg
Núcleo de Bioética do Instituto do Coração do HCFMUSP
Autor do blog Bioamigo