Transexualidade: a questão da identidade de gêneros além da ficção

25 de setembro - 2017
Por: Equipe Coração & Vida

Por Mônica Maino e Maria Alice Fontes

A questão da identidade de gênero tem sido destaque em debates, principalmente depois de uma personagem de uma novela ter revelado ser transgênero. De maneira muito delicada e didática, a autora tem abordado diferentes ângulos para a compreensão desse tema: a dificuldade de diagnóstico, o preconceito e a violência a que são submetidos os transgêneros, o sofrimento psíquico, o tratamento para adequação ao gênero que não foi designado no início da vida, a rejeição pela família.

As psicólogas Maria Alice Fontes e Mônica Ribas Maino - Foto: Divulgação
As psicólogas Maria Alice Fontes (à esq.) e Mônica Maino – Foto: Divulgação

A  transexualidade, porém, não é um fenômeno recente. No Século 17, o Abade Choisy já descreveu sua vida dupla como homem e como mulher. A transexualidade já era um fenômeno reconhecido desde o final do século 19. No entanto, foi apenas a partir de 1950, com o avanço da Medicina, que houve possibilidade técnica, através de tratamentos hormonais e cirurgias, de se viabilizar a demanda de “adequação” dos transexuais.

A transexualidade deve ser entendida como uma questão de identidade e não uma perversão sexual, nem uma doença debilitante ou contagiosa (DE JESUS, 2009). Não está relacionada à orientação sexual, como geralmente se pensa, não é uma escolha nem um capricho.

Existe uma confusão quanto à diferença entre identidade de gênero e orientação sexual.

A Identidade de Gênero refere-se ao gênero com o qual o indivíduo se identifica, como homem ou mulher ou nenhum dos dois. Em relação à identidade de gênero, o indivíduo pode ser:

a) Cisgênero: Identifica-se com o gênero com o qual nasceu, ou seja, há conformidade entre o gênero designado/atribuído e o percebido/sentido pela própria pessoa;

b) Transexual ou transgênero: Ao contrário do anterior, identifica-se com o gênero oposto ao dado no nascimento, ou seja, o gênero designado/atribuído ao nascimento não está de acordo com o percebido/sentido pela pessoa. Essas pessoas não conseguem aceitar características anatômico-sexuais de seu corpo, pois as identificam com o gênero oposto (ou diferente) ao que sentem ser o seu. E/ou não conseguem viver socialmente de acordo com o gênero designado.

Vale lembrar que mulher transexual é toda pessoa que reivindica o reconhecimento social e legal como mulher. Homem transexual é toda pessoa que reivindica o reconhecimento social e legal como homem.

A Orientação Sexual refere-se ao gênero pelo qual a pessoa sente alguma forma de atração. Em relação à orientação sexual, o indivíduo pode ser denominado, de acordo com uma convenção social:

a) Heterossexual: atraído pelo gênero oposto;
b) Homossexual: atraído pelo mesmo gênero;
c) Bissexual: atraído pelos dois gêneros;
d) Assexual: não sente atração pelo mesmo gênero nem pelo oposto.

Segundo Virupaksha, H. G., Muralidhar, D., & Ramakrishna, J. (2016), a questão da identidade de gênero é tão séria que observamos importante impacto nas estatísticas de saúde mental. A taxa de tentativa de suicídio entre pessoas transgênero varia de 32% a 50% entre os países, consideravelmente altas em comparação com a população em geral.

Outros importantes problemas são: discriminação, bullying, violência, rejeição pela família, amigos e comunidade e assédio. A discriminação e os maus-tratos no sistema de saúde são os principais fatores de risco que influenciam o comportamento suicida entre as pessoas transgêneros.

Luis Pereira Justo, psiquiatra no Ambulatório de Saúde Integral de Travestis e Transexuais do Hospital das Clínicas, em São Paulo, defende a importância de saber quando existe a disforia de gênero, caracterizada por um sentimento de insatisfação, ansiedade e desconforto com o corpo masculino ou feminino, com o qual nasceu.

Essa disforia gera intenso sofrimento psíquico que pode levar ao abandono da escola, do trabalho e ao auto isolamento, chegando em muitos casos a uma depressão. Segundo ele, apenas a cirurgia de mudança de sexo não resolve todos os problemas ligados à transexualidade, mas pode consistir numa tentativa de adequação para o sofrimento que a incongruência de identidade de gênero implica. É fundamental compreender que o que determina a identidade de gênero transexual é a forma como as pessoas se identificam, e não um procedimento cirúrgico.

Em 1997, o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução nº 1.482, autorizou a realização de cirurgias de transgenitalização em pacientes transexuais no país, alegando seu caráter terapêutico. Esta resolução parte do princípio de que o paciente transexual é portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação ou autoextermínio.

A intervenção cirúrgica passou a ser legítima no Brasil, desde que o paciente apresente os critérios necessários para a realização da mesma e o tratamento siga um programa rígido, que inclui a avaliação de equipe multidisciplinar e acompanhamento psiquiátrico por no mínimo dois anos, para a confirmação do diagnóstico de transexualidade.

O aumento da demanda de tratamento médico cirúrgico por parte dos transexuais impulsionou a criação de programas assistenciais que hoje atendem a um grande número de pacientes, com vasta experiência na área de assistência e pesquisa, como o Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Em geral, o processo assistencial compreende as seguintes etapas: avaliação e acompanhamento psiquiátrico periódico para confirmação do diagnóstico; psicoterapia individual e de grupo; hormonioterapia, com o objetivo de induzir o aparecimento de caracteres sexuais secundários compatíveis com a identificação psicossexual do paciente; avaliação genética; e tratamento cirúrgico.

Além disso, vários desses serviços já estabelecem contato com uma assessoria jurídica, para indicação de pacientes operados no processo de mudança de nome. Vale destacar que, na transexualidade, a importância do acesso aos serviços de saúde consiste não apenas no cuidado do processo de saúde-doença, mas fundamentalmente numa estratégia de construção de si (ARÁN, MURTA & LIONÇO, 2009).

Uma possível explicação científica para a transexualidade foi levantada através de pesquisas pelo Dr. Alexandre Saadeh, psiquiatra do HC-USP. Segundo ele, a genitália se forma por volta da décima semana no feto. Nesse período, o cérebro ainda está em desenvolvimento, mas, por volta da vigésima semana, se define a área cerebral que dará a identidade de gênero ao bebê. Ou seja, pode haver genitália masculina com cérebro masculino e genitália feminina com cérebro feminino ou vice-versa. Ele explica que, nestes casos, nasce uma criança com questionamentos em relação a sua identidade de gênero. Isso vai se manifestar logo por volta de 2 a 4 anos de idade, que é quando a criança já tem uma maturidade neurológica para dizer se é menina ou menino.

O que ocorre é um cérebro feminino numa genitália masculina ou o contrário. O cérebro e a genitália desenvolvem-se em sentidos opostos por influência dos hormônios e outras substâncias que podem ter circulado pela placenta e cordão umbilical.

Há um movimento por parte dos ativistas no sentido de despatologização da transexualidade, tendo em vista a adoção de uma concepção de saúde que reconheça a pluralidade de identidades de gênero como uma manifestação natural dos seres humanos e que atenda as demandas das pessoas trans sem a necessidade de condicionar esse atendimento a um diagnóstico psiquiátrico e/ou psicológico.

A violência e o preconceito dentro e fora do Brasil só contribuem para aumentar o grau do sofrimento dos transexuais. Dados do Grupo Gay da Bahia mostram que 42% das vítimas LGBTs mortas no Brasil em 2016 eram transexuais. No mês passado, o presidente Donald Trump anunciou no Twitter que pretende proibir pessoas transgênero de servir nas forças armadas. Ainda, um dos primeiros atos de sua administração foi revogar a decisão de Obama de permitir que pessoas transgêneros utilizem banheiros de sua preferência em escolas públicas.

Alguns transgêneros têm procurado a ajuda de psicólogos, como fez a personagem Ivana, da novela global. Nesse sentido, é fundamental ajudá-los, com atitude empática e respeito, a compreender que as pessoas não podem escolher livremente o que são quanto à sua orientação sexual e nem o que sentem ser em relação à sua identidade de gênero, mas que podem escolher manifestar ou não o que sentem e viver livremente como desejam.

Acolher e orientar, além de apoiar na comunicação aos familiares e no processo de adequação ao gênero que não foi designado no nascimento, é o papel do psicólogo nessas situações.

É papel de todos nós combater transfobia, a homofobia e o estigma na escola, nos órgãos de assistência à saúde e em toda a sociedade e estimular a tolerância. Aqueles que encontram dificuldades nessa área devem procurar ajuda psicológica especializada.

* Mônica Maino é formada em Psicologia pela PUC-SP e mestre em Ciências pelo Departamento de Psicobiologia da Unifesp. Tem mais de 20 anos de experiência no acompanhamento psicopedagógico de adolescentes com dificuldades de aprendizagem e no atendimento clínico a dependentes químicos e orientação a seus pais.

* Diretora da Clínica Plenamente, Maria Alice Fontes é formada em Psicologia pela PUC-SP, doutora em Saúde Mental pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) e mestre em Ciências pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina. Também é especialista em Terapia Cognitiva pelo Beck Institute of Cogntive Therapy (Philadelphia, EUA). 

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